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Quando discutimos os papéis do jornalismo para além da informação, é inevitável pensar nos dilemas éticos que acompanham essas funções paralelas. O que essa atuação ramificada implica para a profissão? Até onde podem ir os jornalistas? “Como o jornalismo vem percebendo que tem perdido mais atenção para outros personagens dentro da arena pública, o jornalista tenta muitas vezes emular o influenciador digital”, analisa Rogério Christofoletti. 

Em entrevista à reportagem, o jornalista, professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), co-fundador do Observatório da Ética Jornalística (objETHOS) e autor de livros como “Ética no Jornalismo” (2008), reflete sobre o papel da profissão na era da influência digital, a atuação dos profissionais que comandam os programas policialescos – denominados por ele “justiceiros da TV” e “valentões” – e os riscos que vêm com isso. 

Segundo ele, o jornalismo é, de nascença, uma profissão de alta exposição, o que ganha fôlego nesses tempos de auto-exposição – expressões parecidas, mas com significados que podem ir de encontro um ao outro. O que não pode acontecer, defende o especialista, é que os profissionais percam de vista a responsabilidade intrínseca à área. 

“Os jornalistas precisam ter uma convicção ética que se guie pelo interesse público, não pelo interesse pessoal, pelos ganhos que eles vão ter”.

Confira a conversa abaixo: 

1. Tornar-se figura pública é um processo intrínseco a qualquer profissão que envolva um maior nível de exposição na era das plataformas? O quanto isso afeta a prática jornalística?  

O jornalismo é uma atividade de alta exposição. Se a gente for comparar com outras, fica muito evidente, muito visível. Veja, por exemplo, a dentista: ela fica dentro do consultório dela, atendendo. O veterinário dentro do consultório dele, o engenheiro dentro do escritório dele. O jornalista não, ele fica na rua, fica no estúdio, fica nas redes sociais, então precisa se expor, porque vai fazer um tipo de comunicação que é uma comunicação de massa. Precisa ter uma visibilidade diferente. Essa é uma coisa.

A outra coisa é que nós estamos vivendo em tempos onde a exposição, a auto-exposição e a alta exposição são uma espécie de credenciais de celebridade e de popularidade. A figura mais clara é a do influenciador. O influenciador é aquele que, de alguma forma, tenta ter uma ascendência sobre as pessoas, fazer com que as pessoas ajam, sintam ou pensem de uma certa maneira. Então, o influenciador também precisa de alta exposição, ele não pode ser incógnito. Mesmo quando não é uma pessoa que nós conhecemos de CPF, é uma persona pública. Eles de alguma maneira estão se cruzando, tanto o jornalista quanto o influenciador. E como o jornalismo vem percebendo que tem perdido mais atenção para outros personagens dentro da arena pública, o jornalista tenta muitas vezes emular o influenciador digital. É aí que a gente encontra essas pessoas. 

Antes dos influenciadores digitais, havia jornalistas muito conhecidos, notórios na televisão, que buscavam o cargo público. Isso já existia. É que hoje a política também se dá nas redes, também se dá na internet e por aí vai, então isso tem um impacto forte no jornalismo. Porque muitas vezes a missão de informar ou de comunicar é também influenciada pela necessidade de aparecer, pela necessidade de ter a atenção das pessoas. Então, se aquele jornalista era muito destemido, agora ele passa a ser muito corajoso, porque precisa de uma maneira de se descolar dos demais para ter visibilidade e, portanto, ter uma validação social para o tipo de atividade que está buscando.

2. Qual a diferença entre figura pública e celebridade?

É muito importante que haja uma definição de limites para o jornalista e também para o influenciador. Na verdade, o que a gente está tratando, entre outras coisas, é da responsabilidade que alguém tem de interferir na vida de outras pessoas. O jornalista já fazia isso na medida em que ele era entendido como alguém que poderia trazer informações, oferecer contextos e fazer com que a pessoa soubesse, depois desse encontro com o seu conteúdo, um pouco mais do que se passa sobre um assunto. Só que o jornalismo veio se formando e se espalhando pela sociedade, de acordo com algumas técnicas – e aqui tem um conhecimento técnico, do fazer, das práticas, e também um conhecimento ético, que aponta os seus limites e a sua responsabilidade. Por isso que se fala que jornalismo de verdade só é possível ser feito se você tem responsabilidade.

Você não vai publicar algo que você está em dúvida. Você vai publicar só depois que verificar, ouvir fontes, ouvir as pessoas envolvidas ou as partes envolvidas, checar, verificar documentos, confirmar informações, atribuir a alguém essas falas e por aí vai. Isso durante muito tempo fez uma diferença muito grande, separando jornalistas de outras pessoas que comunicam. Todo mundo pode comunicar, só que o jornalista tem essa preocupação ética, deontológica, de só fazer isso com muito cuidado profissional e ético. Qualquer pessoa, por exemplo, pode ajudar alguém e fazer ali um curativo, mas não pode fazer uma cirurgia ou uma consulta, que só quem pode fazer é o médico. Porque o médico, além de ter o conhecimento técnico, também tem responsabilidade ética. Ele precisa saber como lidar com o paciente. É a mesma coisa com o jornalista. 

Eu costumo dizer que redes sociais e jornalismo são animais diferentes. São parecidos, mas diferentes. É como, por exemplo, cavalo e zebra. Se eu quiser cavalgar, eu não vou cavalgar numa zebra. Ela não foi feita para aquilo. Se eu quiser ir no zoológico para ver um animal exótico, eu vou ver um cavalo? Cavalo eu vejo toda hora, eu vou ver uma zebra. Da mesma maneira, redes sociais e o jornalismo são animais parecidos, mas diferentes. E onde que eu quero chegar? Eu quero chegar nos limites. O jornalista que tenta simular as redes sociais precisa tomar cuidado para não renunciar dos seus limites éticos. É importante que ele seja conhecido? É. Mas ele não pode abrir mão dos seus cuidados éticos para ser conhecido e celebrizado.

3. Hoje, há a possibilidade do público interagir de outras formas com os jornalistas que veem na TV, e é comum que esses profissionais acumulem fã-clubes nas mídias sociais e marquem presença no universo das publicidades. Quais os limites entre o jornalismo e a celebrização? Para o senhor, qual a importância de manter essa linha bem definida? 

A gente está vivendo tempos malucos, né? Todo mundo ou quase todo mundo quer ser notado. As pessoas têm uma ânsia muito grande de serem reconhecidas, de receberem o carinho ou reconhecimento das outras pessoas. Eu entendo um pouco isso.

Por outro lado, a gente precisa entender que isso é impossível para todo mundo e que cabe a cada um de nós também, como pessoas, lidar melhor com esse tipo de expectativa. O que a gente está buscando, afinal? Está buscando a validação social, a confirmação de que estamos certos, de que somos boas pessoas, e por aí vai. Isso de alguma forma também adoece. Faz com que as pessoas criem situações artificiais de exposição que depois elas podem se arrepender ou que podem fazer outras pessoas próximas, seus parentes, por exemplo, se arrependerem. A vida não é um reality show, a vida é diferente. As redes sociais causaram uma série de distorções cognitivas na gente, entre as quais imaginar que a vida é o Instagram, e não é. As pessoas não colocam seus fracassos no Instagram, só colocam os seus triunfos.

Só que a gente sabe que não tem só triunfos, que a vida é mais mesclada, mais diversa, mais plural. Então, tem uma questão sociológica, das pessoas buscarem essa celebridade a qualquer custo, e tem também uma uma questão psicológica, das pessoas buscarem aí uma compensação para as suas frustrações, para os seus anseios, para suas faltas, para os seus desejos. 

A gente como sociedade precisa aprender com esses processos e, claro, quando você está falando de jornalistas é a mesma coisa. Os jornalistas precisam ter uma convicção ética que se guie pelo interesse público, não pelo interesse pessoal, pelos ganhos que eles vão ter. “Ah, mas se eu for conhecido, as pessoas vão me respeitar”. Não necessariamente. A credibilidade jornalística é diferente da celebridade. Ser célebre é ser conhecido, não é ser reconhecido pelo que você faz. A reputação online não significa necessariamente uma boa reputação profissional. Tem pessoas que são infamadas e tem pessoas que são infames, quer dizer, elas são conhecidas pela sua má fama. Então, a gente precisa pensar um pouquinho sobre isso, principalmente quando somos jornalistas e queremos ser reconhecidos pelo que fazemos de positivo, de profissional, de ético e por aí vai.

4. No texto “O podcast da ética abandonada”, o senhor reforça que o formato em que a história é contada é fundamental para definir limites éticos em profissões como o jornalismo. A linguagem apelativa e sensacionalista dos jornais policialescos, em que apresentador e repórteres se colocam na notícia e se revoltam junto ao público, ao mesmo tempo que ultrapassam muitas vezes os limites éticos e até direitos humanos, tendem a causar um nível maior de identificação com quem está assistindo. Como o senhor vê essa dualidade? Podemos dizer que esse jornalismo apela mais para a curiosidade que para o interesse?

Vamos por partes. Esse não é um fenômeno novo. Os valentões, os jornalistas justiceiros, os programas policialescos, eles têm pelo menos 30 anos ou até mais. Eles são o resultado também de uns fenômenos sociais. A sociedade vive insegura. Essas pessoas [os jornalistas] enaltecem a insegurança e não as condições de segurança. Essa sociedade não vê que o Estado resolve a questão da insegurança pública e precisa se expressar. Ela vê nessas pessoas, muitas vezes, canalizadores dessa manifestação de descontentamento. Isso é um dado.

Outro dado é que o que eles fazem muitas vezes vai contra a ética jornalística, isso está no nosso próprio código de ética, que adverte para não apelar para morbidez, para miséria alheia, para o sensacionalismo, entre outras coisas. E muitos colegas policialescos ignoram e fazem isso de maneira muito diária. Outro aspecto ético que eles costumam transgredir é que muitas vezes vocalizam um discurso classista, discriminatório, racista e misógino e transfóbico também. Então, eles acabam se tornando também porta-vozes de um tipo de justiça que não é justiça, é ajustiçamento. E ao mesmo tempo em que eles fazem isso, fazem a glorificação das forças de segurança. Forças de segurança que muitas vezes agem com violência não autorizada, com violência classista, com violência desmedida. Veja, eu contei por uns três problemas éticos resultantes disso.

Ah, mas então o jornalista não deve cobrar as autoridades? Não, ele deve cobrar as autoridades. Só não do estúdio. Eu quero ver essas pessoas serem valentes na frente de acusados de homicídio, de latrocínio, essas pessoas sem algemas e sendo xingadas de marginal, de vagabundo. Eu quero ver toda essa coragem na frente de alguém que pode reagir. E quero ver também que esses jornalistas tão valentes sejam valentes para dar nome aos bois, falar com o secretário da segurança pública ou o juiz tal deveria ter feito uma coisa e não outra. Esses são os problemas dos valentões de internet, daqueles que no estúdio acabam vocalizando tanta vontade de fazer justiça, mas o que querem na verdade é se descolar dos demais, incitar uma atmosfera permanente de insegurança. Porque se não houver insegurança, eles deixam de existir. Precisa estar ruim. Quanto pior estiver, para eles é melhor, porque aí vão ter o que dizer.

5. Na Bahia, veio à tona em 2023 um esquema criminoso que desviava as doações recebidas pelo programa Balanço Geral, da afiliada da Record no estado, e acontecia com a participação do apresentador Marcelo Castro e do editor-chefe, Jamerson Oliveira. Eles chegaram a movimentar mais de R$3 milhões nesses episódios. O processo ainda está em andamento, mas eles foram demitidos da Record e, nesse meio tempo, Marcelo Castro ficou muito popular com uma página no Instagram chamada Alô Juca. A popularidade foi tanta que agora ele está trabalhando no SBT que leva o mesmo nome da página e faz esse tipo de comunicação de alarde. Nós percebemos também que as imagens que eles usam para esse sensacionalismo, para fazer a espetacularização que molda o programa, são geralmente de pessoas pobres e periféricas, pessoas negras, não é?

Sim. Eles se valem de uma situação privilegiada, que é a visibilidade jornalística ou, muitas vezes, o veículo de comunicação, a marca jornalística, para fazer o que chamam de “jornalismo social” e coisas do tipo. Tem muito pouco de social, né? Tem muito mais ali de show, de entretenimento, uma questão mais híbrida. E como você está apontando, em algumas situações não só aspectos antiéticos, mas inclusive aspectos ilegais. Então, é preciso que a população tenha clareza disso e que denúncias sejam feitas contra essas pessoas. Denúncia num sindicato de jornalistas, por exemplo, na comissão de ética, denúncia junto ao Ministério Público, com doação civil pública para, por exemplo, penalizar pessoas que estão lidando com a com a boa fé alheia.

6. Outra forma de interação entre telespectadores e jornalistas acontece quando o público recorre ao jornalismo por auxílios que vão além das “responsabilidades” da profissão, como atendimentos de saúde e apoio jurídico e financeiro, que também é algo comum em telejornais policialescos. Muitos dos repórteres com quem eu conversei relataram que sempre tem uma fila de gente em frente à emissora para pedir ajuda. O que faz com que essas pessoas recorram às emissoras? É uma ausência de quem deveria estar prestando esse auxílio para elas?

O rigor é o Estado, ou a sociedade de uma maneira geral. Quer dizer, outros setores da sociedade podem se organizar, associações empresariais, por exemplo, poderiam ter uma pegada mais social. Organizações não governamentais e o terceiro setor também poderiam ajudar. O que a gente percebe é que essas emissoras acabam ocupando um espaço que poderia ser do Estado e o Estado está omisso. O Estado não faz o trabalho dele nesses casos e deveria fazer. À medida que o Estado vai ocupando esse espaço, não sobra espaço para os veículos de comunicação. Efetivamente, isso é um desvio de função do meio de comunicação. E também uma maneira dele manter laços comunitários com a sua sociedade. Isso é importante para o jornalismo, manter o diálogo com a sua sociedade, mesmo que seja de uma maneira mais assistencialista, que não é a melhor da melhor forma, né? Dessa forma você não emancipa ninguém. Você torna essas pessoas cada vez mais reféns, sempre reféns.

7. E quais os riscos de ultrapassar o limite entre jornalismo e assistencialismo na busca por “engajamento emocional”?

Veja, há diversos riscos. Um deles é você instrumentalizar a sua audiência. Fazer da sua audiência um instrumento para você se manter em visibilidade, em exposição, em proeminência, em fama e por aí vai. Outro risco também é você se distanciar da sua função de bem informar para fazer outras coisas, como esquema de pirâmide e campanhas. E um outro risco, porque há vários, é resvalar para o sensacionalismo, para o assistencialismo, para a morbidez. Não tratar mais o seu público como um igual, como um horizontal, um comum, mas como alguém que precisa ser tutelado, que precisa ser sempre zelado, cuidado. E não é o caso.

8. Não é raro que jornalistas usem desse capital social para tentar migrar para a política. Para o senhor, apesar de ser permitido na lei, há algum entrave ético quando um repórter de TV vence o pleito e continua atuando como jornalista durante o mandato?

Qualquer cidadão ou cidadã, se tem direitos políticos, tem direito a votar e ser votado. Isso, ok. Ele pode mudar de carreira, então. Eu acho que fica muito complicado quando [o jornalista] é político e mantém um programa. Eu acho isso muito ruim. Isso é muito ruim porque ele coloca em desvantagem os outros políticos, porque ele tem duas tribunas. E mais do que isso: o público nunca sabe com quem está falando. Está falando com o comunicador ou com o político? Eu acho que não é sincero, não é transparente, não é claro para ninguém, e é necessário que seja claro para as pessoas. Em resumo, ele tem direito de ser candidato? Tem. Mas vai ter uma vantagem porque já tem uma vitrine de visibilidade e tudo mais. Uma vantagem em relação a outras pessoas. Mas, assim que ele tiver um mandato, ele deve cumprir o mandato como político e não mais como comunicador. Como se suspendesse um pouco a carreira para esse tipo de coisa. Me parece que, se não temos regras para isso, seria muito bom ter regras que impedissem uma coisa e outra.

9. Toda essa conversa nos leva a uma pergunta importante: para o senhor, até onde vai o papel do jornalismo? 

O jornalista deve ser um profissional que se guia pelo interesse público. Isto é, ele deve ajudar a coletividade, a comunidade dele, a buscar a resolução dos seus problemas. Às vezes, o jornalismo tem a resolução do problema cobrando das autoridades competentes que elas façam o seu trabalho. Denunciando esquemas, maus usos, abusos… O jornalismo não muda totalmente o mundo, mas permite que as pessoas se movimentem para mudar o mundo.

O jornalismo tem muitos limites, tem muitas imperfeições, mas ainda é o melhor sistema de fornecimento de informação contínua para a sociedade que a gente já criou como humanidade. Se a gente acabar com o jornalismo, o que é que vamos colocar no lugar? Não consigo pensar em nada que possa nos ajudar. Então, ele tem um papel que é limitado, mas que, se bem feito, pode fazer diferença em muitas localidades.

Esses foram alguns dos principais trechos da conversa com Rogério Christofoletti.

Quer ouvir a entrevista completa? Dê play aqui:

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